1. UM INSTITUTO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

 

O Instituto de Tecnologia ORT do Rio de Janeiro é uma instituição judaica brasileira sem fins lucrativos que mantinha, sob a direção de Hugo Malajovich, uma política de bolsas de estudo favorecedora do ingresso de alunos das mais variadas origens, sem distinções de credo, em um convívio sem preconceitos e um ambiente cidadão totalmente comprometido com a educação.

 

Essa política transformou uma escola técnica em um Instituto de Ciência e Tecnologia que ganhou o reconhecimento e os elogios de numerosas personalidades nacionais e internacionais, como os Prêmios Nobel Ada Yonath e Dan Schechtman.

 

Tive o privilégio de participar dessa experiência nos 25 anos em que lá lecionei e atuei como coordenadora do Curso Técnico de Biotecnologia (Nível Médio) e da área de Ciências, comum a todos os alunos. Uma etapa importante na minha vida profissional, encerrada em 2015, durante a qual fui responsável pela criação e o andamento do Curso de Biotecnologia e da montagem de seis laboratórios que atenderam centenas de alunos.

 

Os primeiros anos foram muito difíceis. Tivemos que criar e inventar novas formas de ministrar as aulas práticas com materiais de baixo custo, descartáveis e usados no dia a dia. Um trabalho árduo que, posteriormente, me valeu o prêmio Beatrice Wand-Polak (2008), outorgado por World ORT aos professores que se destacavam no desenvolvimento de novos programas, materiais e tecnologias educacionais.

 

Na medida em que o trabalho era reconhecido e apreciado e que nossos graduados obtinham sucesso em seus empreendimentos, foram chegando upgrades para os seis laboratórios que, em 2015, estavam muito bem equipados (Tabela 1).

 

Tabela 1: Laboratórios* construídos e equipados com o apoio de World ORT e ORT Brasil, Itaú Unibanco, Servenco, empresas Klabin, família Ostrovsky, família Maimon (EPTCA), Jayme Gudel, Colônia de Férias Henrique Lemle.

Observação

 

* Os cursos de Eletrônica, Informática e Comunicação Social tinham laboratórios específicos.

 

**  Núcleo Experimental de Educação Ambiental (NEDEA) na Colônia de Férias Henrique Lemle (Petrópolis).

 

Entre 1992 e 2015, o Curso de Biotecnologia formou 260 técnicos em Biotecnologia (Nível Médio), que completaram mais de cem trabalhos finais de boa qualidade e tiveram excelentes resultados nos exames de ingresso às universidades. Muitos deles são hoje brilhantes profissionais.

Por seis anos consecutivos, alunos do curso de Biotecnologia foram selecionados para participar de um Seminário de Ciências no Instituto Weizmann em Rehovot (Israel), onde tiveram excelente desempenho.

 

Como indicadores de sucesso adicionais citarei as exposições montadas com os trabalhos do alunado por ocasião das Semanas de Ciência e Tecnologia, o desenvolvimento de atividades empreendedoras ligadas à especialidade e, no Brasil, a participação dos alunos como monitores nos cursos de extensão de professores, de alunos de escolas públicas ou de representantes brasileiros nas Olimpíadas Internacionais de Biologia.

 

Como indicadores indiretos complementares temos a publicação de várias edições de livros de minha autoria, Biotecnologia (Axcell Books do Brasil, 2004) e sua versão em espanhol, Biotecnología (Editorial de la Universidad de Quilmes, Argentina, 2006) com duas edições. Ambas versões podem ser encontradas hoje no Google Academics. 

As estatísticas dos primeiros cinco anos da página-web “Biotecnologia: Ensino e Divulgação” (2010-2020), com material em português e em espanhol, mostram o alcance do emprendimento, hoje renovado neste site.  

 

No exterior, transmitimos nossa visão da Biotecnologia nos cursos para professores, estudantes e graduados universitários, ministrados no Uruguai, Venezuela, Peru e Bolívia. No menos importante foi a participação nas atividades de organizações como a Associação Nacional de Biossegurança (ANBIO), do Conselho Regional de Biologia (CRBio-02) e da Comissão de Biotecnologia do Conselho Federal de Biologia (CFBIO) 

 

Lamentavelmente, em 2015, a chegada de novas autoridades sem formação prévia na área de educação veio acompanhada de uma nova proposta educativa que mudaria o perfil do estabelecimento. Considerando que experiências educativas bem-sucedidas deveriam ser preservadas e continuadas, eu não quis acompanhar essa transformação.

 

Dentro do contexto de uma escola de ciência e tecnologia, o curso Técnico de Biotecnologia (Nível Médio) do Instituto de Tecnologia ORT do Rio de Janeiro representou, entre 1990 e 2015,  uma  experiência pioneira de ensino baseada na criatividade, no trabalho e no rigor científico.  Em função dos logros obtidos ao longo de sua existência, essa experiência configura, na área de educação tecnológica, um case bem-sucedido cujo estudo pode trazer informações úteis para os docentes e alunos interessados.   

 

2. OS PRIMÓRDIOS

 

Em meados da década de 1980, o conselho acadêmico de World ORT, presidido pelo eminente cientista israelense Efraim Katzir, identificou a Biotecnologia como uma das áreas promissoras em que deveriam ser investidos esforços. Graças à iniciativa do diretor de ORT Brasil, Hugo Malajovich, o apoio do presidente da instituição, Samuel Malamud, e com a inestimável supervisão do professor Kurt Politzer, em 1985 iniciamos um estudo preliminar sobre o desenvolvimento da área no país.

 

Para educadores da França, da Inglaterra e de Israel com os quais estabelecemos contato, um dos maiores desafios para o futuro da biotecnologia estaria na educação, uma opinião que compartilhamos plenamente. Por isso, no Brasil, com o apoio da Fundação Vitae Brasil, iniciamos em 1988 a elaboração dos primeiros Cadernos de Biotecnologia, com material para o professor e o aluno sobre dois temas, um deles abordava a Biotecnologia Clássica, o outro, a Biotecnologia Moderna. Contamos com alguns conselhos inestimáveis do professor Oswaldo Frota Pessoa, bem como com a orientação dos professores Ana Clara Schenberg, Eugenio Acquarone e Orlando Zancanaro Jr. da Universidade de São Paulo (USP), e Marcos Palatnik e Lucy Seldin da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

Apesar de o projeto ter sido descontinuado, os Cadernos de Biotecnologia seriam a semente para a preparação do currículo e das atividades práticas do Curso Técnico de Biotecnologia do Instituto de Tecnologia ORT do Rio de Janeiro. Com a colaboração de Christina Sid Carvalho e Sheila Roitman, publicamos também os primeiros artigos na revista Ciência e Cultura e apresentamos vários trabalhos nos encontros “Perspectivas do Ensino de Biologia”, na Faculdade de Educação da USP (1991, 1994).

 

No início da década de 1990, são criados os primeiros cursos técnicos de Biotecnologia, na Escola Técnica Federal do Rio de Janeiro, hoje IFRJ, e no Instituto de Tecnologia ORT do Rio de Janeiro, onde a nova especialidade se somava às outras existentes (Informática, Eletrônica e, mais tarde, Comunicação Social) que não serão aqui objeto de análise.

 

Durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – ECO-92 (Rio de Janeiro, 1992) tive a oportunidade de conversar com o representante da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Albert Sasson, cuja visão sobre a importância da biotecnologia para o desenvolvimento dos países menos favorecidos contrastava com a visão apocalíptica de outros participantes. Por meio de seus escritos, distribuídos generosamente em tempos pré-Internet, Albert Sasson teve uma influência profunda em mim e em vários colegas latino-americanos de minha geração.

 

3. A CONSTRUÇÃO DO CURSO DE BIOTECNOLOGIA

 

Durante muitos anos, o trabalho técnico foi entendido exclusivamente como uma ajuda nas tarefas laboratoriais mais simples. A partir dos últimos anos da década de 1980, essa visão teve os dias contados. Empresas de Biotecnologia inovadoras começaram a comercializar equipamentos, reagentes e kits variados que integravam outras tecnologias avançadas, como a informática e a eletrônica. Em um futuro próximo, o trabalho técnico exigiria uma base profunda de conhecimentos que permitisse ao profissional trabalhar em um mercado com características muito dinâmicas.

 

Embora ainda persistisse na sociedade a imagem tradicional do técnico mal remunerado, nós, que acompanhávamos a transformação do mundo de trabalho, sabíamos que uma boa formação técnica poderia abrir muitas portas em universidades e empresas. Com esse diagnóstico, estabelecemos algumas premissas que serviriam como orientação na organização do curso.

 

  1. Por ser um curso técnico seria indispensável fornecer uma boa formação prática aos estudantes. Essa formação seria complementar aos cursos do ensino médio, dando a ele também a possibilidade de acesso à universidade. No caso do curso de Biotecnologia seria fundamental que o conteúdo das técnicas tivesse como embasamento as matérias básicas do núcleo comum a todos os alunos do estabelecimento.

 

  1. Para evitar a dicotomia entre os cursos de ciências e os cursos técnicos, dever-se-ia estabelecer uma correlação estreita entre as matérias técnicas do curso de Biotecnologia e as matérias básicas de ciências do núcleo comum a todas as especialidades.  

 

  1. Por ser a Biotecnologia uma área multidisciplinar, o curso técnico teria três alicerces: Química, Biologia e Biotecnologia.  O aluno adquiriria conhecimentos práticos básicos de química experimental, de biologia aplicada e de biotecnologia (microbiologia, bioprocessos, micropropagação), visando aplicações ao meio ambiente, à indústria e à agricultura.

 

4. A construção do conhecimento

 

Tabela: as matérias técnicas do curso de Biotecnologia (1992-2015).    

  1. O tratamento dos bioprocessos, uma tecnologia ligada à Engenharia, teria que ser experimental em função da idade dos alunos e dos conhecimentos matemáticos correspondentes a essa idade.

 

  1. As aplicações na área de saúde teriam que ser limitadas às técnicas microbiológicas básicas, por razões de biossegurança, condições econômicas e aspectos legais existentes.  

 

  1. As tecnologias modernas, como a do DNA-recombinante, que não podiam ser desenvolvidas no laboratório, receberiam um tratamento especial (modelos, simulações). Anos depois, a evolução da tecnologia educativa (Internet) nos forneceu material adequado.

 

  1. Para conseguir um bom nível de ensino e assegurar que esse nível aumentasse ou permanecesse constante, seria indispensável estruturar os programas e organizar as atividades práticas de modo a orientar os professores sobre o conteúdo mínimo previsto pela escola e dando a eles o apoio de material periodicamente revisado com vistas a modificar, acrescentar ou substituir atividades.

 

  1. Procurar professores entre os pós-graduandos de boas universidades, alertando-os, porém, sobre a faixa etária e a formação do alunado e apelando à sua criatividade para não ensinar mal o que as universidades ensinam bem. O funcionamento cotidiano dos laboratórios e a preparação dos materiais necessários para as aulas era assegurado por técnicos formados na Escola Técnica Federal de Química ou em nosso curso de Biotecnologia.

 

  1. A matéria Projeto, inicialmente ministrada na segunda e terceira série, posteriormente só na terceira, seria a base para a elaboração de novas atividades. Os alunos receberiam um protocolo sobre um tema de seu interesse que deveriam desenvolver, aplicando sua formação técnica. O projeto que se materializaria como Trabalho de Finalização do Curso, seria redigido e apresentado publicamente, incluindo, quando possível, o roteiro para uma nova atividade prática.

 

  1. Independentemente da orientação que posteriormente seria escolhida no Ensino Médio, todos os alunos do Ensino Fundamental II teriam um curso de cultura tecnológica (Vitor Soares Mann, dissertação de mestrado, UNIRIO, 2010). 

 

  1. O empreendedorismo deveria ser estimulado.

 

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